la caisse du mouton
Antoine de Saint-Exupéry

[ tínhamos uma lucidez espertamente luciferina, crueldades para uso centrífugo e centrípeto ] [ a ironia não salva, mas ressalva. ]

Vamos amar a vida activa?, pergunto eu então. Sim, vamos entrar num barco que chegue de noite aos portos. Teremos horas e horas destinadas à preparação interior, ao apuramento das nossas melhores virtudes. Procuramos nem sequer respirar. Vai ser bom. De manhã haverá a revelação de cidades que a luz equilibra ao alto. O lugar da acção. Vamos fazer coisas – coisas definitivas. Escrever, acabou-se. Agora isto: mergulhar até ao fundo. Porque ficou assente: a literatura não é um facto, um acto a sério.

Pois o que acontece é a população, com uma quantidade de ruas e casas. Estou à espera dos milagres. Experimento ir ao encontro deles pelas ruas fora. Também experimento sentado. Há uma conversa com um tipo: diz que pendurou alguém de cabeça para baixo. Haverá também quem diga ter sido posto nessa posição e ter visto o mundo assim. Relativamente interessante. Pode ser que os anjos falem desta maneira, que se trate de um tema angélico. Conversa puxa conversa, e uma mulher elege a inocência, o dono de um bar informa como é a sabedoria. Aparece também o famoso esquizofrénico: eu tenho as pernas verdes. Mas a morte está no meio de tudo isto. E afinal respiramos, envelhecemos na cara, o crime não deu nada.

Sim, senhores: as pessoas pedem para eu ser mais claro. Como? O que espero é ver a metáfora apocalíptica ganhar um sentido literal. (…) Mas quem me pede significações? Não, não querem metáforas. Ponho-me a falar da beleza mortal dos espectáculos, de certos momentos extremos que renegaram a própria existência desde a origem. É uma coisa minha. Fala-se para estar só, ser contra os outros. Limitar a invasão do mundo – dessas ruas e casas, dessa população de funcionários angélicos. Não me venham com inocências nem sabedorias.

(…)

(…)

O estilo de tratamento bebia numa espécie de desenvoltura maligna. Não era de mansidão o que havia para dizer e fazer. Mas ligava-nos a comoção, sabíamo-nos mutuamente, e por isso praticávamos a honestidade de não facilitar a nossa própria dificuldade.

Tínhamos uma lucidez espertamente luciferina, crueldades para uso centrífugo e centrípeto. Carnívoros, sim, mas tocados também pela secreta fragilidade de quem anda perdido no escuro. As palavras mostrariam, a quem não fosse analfabeto nas coisa implícitas, toda essa movimentação de dentro para fora.

Não havia perdão entre nós, nem entre nós o mundo. Tudo quanto foi dito e feito possuía uma doçura ocultamente envenenada pela raiva e o medo. A paz que se procura durante a biografia que em grande ou pequena escala se tornou fáustica por qualquer, mesmo precipitadamente, pacto, não se encontra nunca mais, nem simples nem complicadamente. Havia momentos para nos divertirmos com a pequena demência de morder as próprias mãos. O teatro disto poderia sê-lo por identificação com o mito de nós mesmos em que, não apenas literalmente, nos empenháramos.

Existe quem não entenda destes divertimentos. Entendíamos, nós. Entender unia-nos.

(…)

Agora amávamos essa queimadura que, com dedos absurdamente inocentes, tocávamos uns nos outros. Fábula da solicitude trocada, uma ilustração do amor sem qualquer amanhã. Porque era já uma despedida de entre nós, uma despedida de nós mesmos. (…) quer dizer: podemos devorar a nossa biografia, podemos ser antropófagos, canibais do coração pessoal. E o escrito conservará cegamente um tremor central, esse calafrio de ter olhado alguma vez o nosso rosto filmado no abismo do mundo.

(…) A ironia não salva, mas ressalva.



in Photomaton & Vox, Herberto Helder



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Uma árvore é uma obra de arte quando recriada em si mesma como conceito para ser metáfora.


Alberto Carneiro