la caisse du mouton
Antoine de Saint-Exupéry

carta aberta ao meu pai

Experimento o silêncio feroz da menina que tem o pai mais forte do mundo ao agarrar os nossos dias. E é natural que assim seja. És o homem que me oferece búzios a lembrar o encantamento pela natureza. Cresci a saber que os homens também lacrimejam. Cresci e não tenho penas de ter crescido.

Não se perde a doçura ao largar a meninez, diz-me cada instante no teu olhar.

Apostaste todas as apostas que fiz, e nunca me disseste que perdeste. Chamaste-me mulher quando te declarei as minhas derrotas.

De ti, trago esta sina de falar como se quisera cantar as palavras todas.
Um patriarca entre mulheres, de ti, trazemos a nossa palavra da noite. E eu quero que o mundo saiba desta laçada que me impele a dizer do homem que se atarefou de vida a fazer a vida.
Sei que permaneces comigo ao colo. Digo-te que o meu regaço cresceu no dia em que me disseste “Agora sou órfão.”.
Incorro numa promessa: estarei aqui na vida a fazer a vida, na força em que me alumiaste. Por nós, pelo bem-querer.

A cada vez que vou embora, peço-te em mudez a bênção.
A tua bênção, meu pai.








photo: You'll Be a Fortress and I'll Be Safe Inside Your Massive Walls, 1978
Jan Saudek

carta aberta à minha mãe

Relâmpagos entram sem licença pela parede de vidro desta divisão. E eu não tenho medo. Confesso o respeito. Não devo tardar a ouvir os rugidos do céu. Penso que não terei medo, mãe. Sinto a humidade na pele. O gato está aqui ao meu lado e acalmo-o na linguagem que me ensinaste. E eu aprendi.

Aí está o poderoso som dos trovões. Vês? Não tenho medo. Sinto a humidade na pele, não será adiada a chuva. A divisão está bonita com a porta escancarada para a noite.

Suspendo a respiração. Cai a água. Tanta força! Cai com tanta força, mãe.

Calei os sons todos da casa. Agora aceito desta noite o que o céu traz. Todos os sons do azul negro luz e dos bramidos de água fresca.

Silencio as acções a sentir o peito. Começo a ver a infância no aconchego em que me abraçaste. Cresço, já não sou apenas eu. Estás ali nas elaborações da vida. Caio por instantes num coágulo ao visitar os dias em que esmoreceste. E eu tive medo, mãe. E tu acordaste sempre de novo. Em gratidão, continuo a crescer. Reconheço-te. Não tenho ânsias. És bonita. Quero enxertar uma roseira na água desta noite, golpear a mão para fazer o pacto com a sua seiva e baptizá-la Ilda. Quero dizer-te tudo o que no silêncio dos olhos fica.

Quero dizer-te,
mãe, sem respeito
à natureza, se eu pudera
quereria ser tua mãe.














photo

processo [ e fantasia ]

É capaz de ser
verdadeiro,
__________ as coisas
crescem
como as flores
vingam
(ou os belos fungos)
deixam que suceda o tempo
às paisagens, e nós sem saber

eu explico, por exemplo eu
coisa
deixo tudo agora, desvio os olhos
descubro a boca a esquecer os sons todos
calados deixo os essenciais logo



se não esquecesse os sons
todos
a maquilhagem seria tão só
isso a tristesse

assim
das flores, ou só duma
flor
(ou dos belos fungos)
é pois que
me oriento na representação
sem saber para quê tanto
as paisagens.

(É capaz de ser
verdadeiro que as coisas
crescem.)





photo

para ela







Os olhos comeram-me viva
foi bom que acontecesse
desesperava já da náusea
era eu e era a razão dormida
longe de tudo.

O garrote guardou a fúria

aconteceu e eu não sei
como arranjei lidação
concebida a pele agarrou-se
não rebentou

é este calor, é aqui dentro
queima e não dói, mas queima
penso-me parda,
não-lúdica
estou mastigada viva ardo.




auto-retrato [ batalhas ]







esta sou a correr ainda impávida esta sou e seguro o vigor seguro muito sou eu aberta no apaziguamento levo todos os alentos dedicados levo os talismãs o calor deixo o excesso da bagagem deixo voluntária os excessos cá dentro é a conciliação































limiar

(Estou) aqui
nas respeitosas repetições*.
A constrição recai
nos comprometimentos. Olham-se
de soslaio. Fico a penar
na condição do juízo. Caio
no torpor. Animo-me e __________________imponho as mãos à obra.
(são as vulgares formas das travessias)

Agora, um pouco acordada, tenho
o bloco e o lápis físicos,
inicia a nova passagem.

(tenho medo)
_______________________________________respeitosa repetição.

-> La frontera, Lhasa de Sela

* expressão surripiada ao Paulo


Assim dói-me a pele.
Sinto os estalos todos
a estriar nas idades que tive.

É no corpo, dói-me a pele
do corpo atrás.
Não consigo contemplar uma ferida.
O ar passa com o tempo e encrespa-me.

Temo.
Se uma criatura me tocar, brotará algo?


















ilustração de Cláudia Santos Silva aka blue :)

I'm sandra aka margarete ~ acknowledgeyourself@gmail.com












































Uma árvore é uma obra de arte quando recriada em si mesma como conceito para ser metáfora.


Alberto Carneiro