Dizer adeus
Digo-o sem nenhum azedume com o universo dos vivos: ando a preparar-me para morrer. Não quando acordo. Aí ainda não consigo. É quando me deito. Tomo o chá, ponho o pijama em cima do aquecedor eléctrico, sento-me na minha existência de homem écran, e começo a sentir que me falta uma unidade menor para cronometrar o saboreio de um adeus. Os segundos são uma eternidade. Subo à cama e deito-me pensando que a minha vida seria mais feliz se eu cumprisse, emocionalmente, este desígnio biológico de morrer todas as noites. É o meu corpo que o pede. Há no sono, o apaziguar de um moribundo. Cerro os olhos e recuso-me terminantemente a imaginar que há um amanhã. Desligo, uma a uma, todas as secções do meu corpo. Deixo de sentir os pés. O desligar sobe-me pelos tornozelos, levo a mão ao sexo, apago-o, depois o tronco, os pulmões, as costas. Já estou quase morto. Ainda sinto o traquitear cardíaco. É neste momento dificil em que assumo desligá-lo, que me apercebo da festa de existir. Morro em paz.
photo: The river, Jan Saudek
1962