A palavra decisiva
O Prof. J.L. Pio Abreu, psiquiatra e professor da Universidade de Coimbra, envia este importante artigo. Venham mais!
Nas discussões sobre o próximo referendo, raras vezes tenho ouvido a decisiva palavra: amor. Tenho ouvido, sim, sobretudo pela parte dos adeptos do não, um fundamentalismo irracional cheio de zanga e intolerância, um desprezo punitivo pelos momentos mais dramáticos das mulheres concretas, reais e normais. Enquanto olham para os adeptos do sim (felizmente a maioria) como criminosos, os fundamentalistas do não compensam o seu desamor pelas pessoas existentes com a proclamação do amor por princípios, dogmas, seres em potência, não existentes como realidade concreta nem como objectos passíveis do amor das pessoas.
O que mais se vê aqui é desamor. Significativamente, em nome de uma “verdade científica” proclamada por quem nada sabe de ciência e que não sabe sequer que a ciência é avessa aos dogmas, procura a dúvida e tem de ser tolerante. Os adeptos da nova moral biológica esqueceram-se da espiritualidade, caindo paradoxalmente num materialismo simplório: uma célula ou um conjunto delas chega para definir uma pessoa. Não se questionam mais. Nem se questionam sequer sobre o destino que deram aos biliões de espermatozóides ou às dezenas de óvulos que geraram dentro de si.
Aceito que muitos adeptos do não terão passado por experiências decisivas que marcaram as suas opções. Não duvido do seu amor aos filhos que tiveram, eventualmente em circunstâncias difíceis, ou que desejaram ter. Esses filhos, mesmo em potência, têm toda a dignidade humana porque foram desejados. Não é porém o caso de quem se vê obrigado a fazer contracepção ou a interromper uma possível gravidez.
Como psiquiatra, sei que os abortos, espontâneos ou provocados, fazem parte da vida de quase todas as mulheres. Alguns podem passar sem sofrimento, excluindo o trauma e a perda de liberdade que resulta do aborto clandestino, ou o drama de transportar o segredo no seio de famílias conservadoras e fundamentalistas. Excluindo também a culpabilidade gerada nas campanhas para os referendos. Toda a questão é saber se a criança era desejada ou não, e qual o empenho amoroso dos pais que, por vezes, já tinham um nome para ela. Neste caso, tratava-se de um ser humano, fosse qual fosse o tempo de gestação.
Nem sempre é assim, e muitas gravidezes iniciais nem sequer são percebidas, se não negadas. Existem mesmo gestações destinadas à adopção (embora uma mulher que prossiga uma gravidez a termo possa criar, por vezes desesperadamente, laços com a criança que vai nascer). Mas se não for a mãe biológica, alguém que encontre a criança irá ter compaixão e amor por ela, e será esse o seu verdadeiro nascimento como pessoa. Sem isso, nem sequer sobreviveria.
O que dá o estatuto humano ao novo ser, seja ele um recém-nascido, feto ou ser em potência, é o primeiro acto de amor para com ele. Curiosamente, é essa a grande verdade que o ritual religioso do baptismo nos ensina.
J. L. Pio Abreu
Psiquiatra, Professor da Universidade de Coimbra