Lamento ter tido a oportunidade de ver cientistas como a Dra. Jerónima Teixeira distorcer dados dos seus próprios trabalhos para defender uma posição num referendo (que se refere ao tempo limite de 10 semanas de gravidez para a interrupção despenalizada) utilizando a frase pronta-a-comover “para a mãe portuguesa ter conhecimento daquilo que o seu bebé sente no útero antes de tomar uma decisão” referindo, posteriormente, que “existe dor a partir das 20 semanas” mas que, enfim, está a tentar provar a dor antes das 10 semanas (tempo de gestação convenientemente estabelecido neste contexto de referendo?!). É preciso explicar quão baixo foi este golpe à ciência e às grávidas (não mães)? Também foi lamentável ver o Professor Manuel Antunes mostrar dois gráficos, comparando o aborto na Inglaterra, entre 1969 e 2002 sem qualquer contextualização.
Desalento, é o sentimento que fica quando se vê um cientista actuar assim, mas isto sou eu que acho que a medicina é uma ciência nobre e tenho a mania de pensar que se deve respeitar a ciência separando-a de crenças pessoais.
Organização Mundial da Saúde
“Os governos têm de avaliar o impacto dos abortos inseguros, reduzir a necessidade de abortar e proporcionar serviços de planeamento familiar alargados e de qualidade, deverão enquadrar as leis e políticas sobre o aborto tendo por base um compromisso com a saúde das mulheres e com o seu bem-estar e não com base nos códigos criminais e em medidas punitivas."
O testemunho de Ana Lourenço
"Blowing in the wind"… Lembrei-me da famosa canção de Bob Dylan ao acabar de ler o último comentário da Ana Matos Pires. "Quantas mais vidas de jovens serão necessárias perder para percebermos que já se perderam vidas demais?" (tradução livre...). E gostava de deixar aqui uma mensagem para todos os meus colegas médicos, e aos ginecologistas e obstetras em particular. Não é uma mensagem "técnica" nem especialmente bem sistematizada. Antes de mais é uma mensagem simples mas franca.
Há fundamentalmente duas razões para se votar Sim no dia 11 de Fevereiro:
1) fazer parar o aborto clandestino e as mortes e sequelas dele decorrentes;
2) entendermos que a mulher tem uma palavra a dizer e o direito de decidir no que diz respeito ao seu próprio corpo e à sua vida futura.
Poderão existir divergências de opinião em relação ao ponto 2) mas não é admissível que, enquanto médicos, fechemos os olhos aos crimes que se vão praticando diariamente, aos quais uma alteração da lei poderia pôr um ponto final, o que reporta para o argumento apresentado no primeiro ponto.
Uma alteração da lei (se ela se concretizar) implicará alterações nas atitudes e no funcionamento de muitos médicos. Mas mesmo que a lei seja alterada é preciso mudar as práticas no nosso cantinho a que chamamos Portugal. Aquilo que preconizo é muito simplesmente o resultado da minha experiência no terreno, das consultas com adolescentes, das consultas de contracepção e de interrupção de gravidez (as minhas únicas escolas). A pouco e pouco, mas com passo firme, teremos de aprender a considerar a mulher menos como uma "doente" a quem podemos pôr um rótulo "diagnóstico" e prescrever um tratamento seguro e eficaz, e mais como um ser humano complexo com uma história pessoal e conjugal únicas (como são todas as nossas histórias pessoais), crenças, conhecimentos e lacunas próprias. Nesse sentido o nosso papel de médicos é mais de "acompanhamento" e informação, chamando a atenção para incoerências fundamentais e contradições mas dando sempre à mulher a última palavra sobre o seu destino, o seu "tratamento". De certa forma é aceitarmos que o nosso papel é "modesto" mas essencial no seu acompanhamento. É, também, o de reconhecermos e de darmos a entender às mulheres que, em última análise, elas são responsáveis pelas decisões que tomam e que depois têm de assumir.
Para terminar gostaria de acrescentar que "ninguém está sozinho" e que como profissionais que somos, interessados antes do mais no bem estar dos nossos "utentes", também poderemos, e deveremos, olhar à nossa volta para os nossos colegas que estarão certamente lá (pelo menos alguns) para nos ajudar a passar por todas estas transições...
Contem comigo, Ana Lourenço.