foi por isso que vim para casa, pintei os lábios, arrastei os móveis de modo a parecer ter um palco no meio da sala e canto agora à medida que sou público. não faz sentido. não cabe na cabeça de ninguém! tudo começou quando o dia começou. não gostei. confesso que não gostei. mesmo. que o sol esteja ausente, enfim, é uma realidade a que temos de nos sujeitar. portanto, vejo-me obrigada a aceitar o dia sem sol. mas que o dia nasça a horas tardias. que a distância tenha a ousadia de ser real. e que eu ainda não tenha sequer uma pista de que existo. não aceito. ora! se senti na pele as cinzas que restam das bandeiras. se tenho a certeza de que vi o velho do rio a fazer jogadas com o cubo mágico. se estou quase certa de que cumprimentei devidamente a mulher que vende tremoços e pevides à porta da igreja. seria lógico que descobrisse uma ou outra pista. porém, não estou tão certa de ter sido uma alucinação o dia em que me sujeitei ao crisma. tenho uma vaga ideia de ter proferido a confirmação de fé. não devo existir. é uma ninharia o espírito que experimento. nem mundo tenho aqui. os jornais parecem brancos de notícias. quase juraria que é uma alucinação. tenho quase a certeza de que estão recheados de boas novas. mas não posso jurar. nem opinar. não vou usar opiniões. fico aqui e canto. farei a vida a cantar. quase juraria. mas não posso jurar. juraria que a pista da minha existência é um som que percepciono. por isso canto. nem por isso me agarro a existir. escrevo estas palavras a cantar. posso cantar.
partido alto, Caetano Veloso