la caisse du mouton
Antoine de Saint-Exupéry

[ prova dos prejuízos – ao ser é retirado tecido mole (3 peitos passam para a entidade paralela do ser), calcule as unidades de abalo auferidas ]

Cogito. A data paralela não lacera. (aos vinte e oito dias deste mês). Este dia não trilha a visão. Debruço-me sobre os danos e experimento um modo de impunidade – às circunstâncias, cada indulgência tem o peso e volume que a antiguidade permite*. Certas circunstâncias nunca, neste tempo todo que é o infinito presente, poderão ser olvidadas. Só assim, permitindo-lhes o espaço sem cálculos de cabra-cega, a coexistência se poderá assemelhar a certa pacificidade.
Isto é aritmética primitiva: xanos - 3 peitos / yantiguidade = conciliação[permissão para abalos(coexistência pacífica)]



cálculo auxiliar: dispensa do preciosismo da prova dos nove *

r u m o [ nuvens em tons de cinza em tons de azul ]

Dizes vem e eu respondo vamos. Vimos e esse é um.
r u m o.

r u m o [ azul em tons de cinza ]

Os dias podem ficar vazios e então morrem os motes. Qualquer coisa pode parecer mortal e então corre-se para casa. Um som pode ultrapassar o limiar do conforto e então solicita-se silêncio. As aparências são o resultado do que germina cá dentro, aí dentro. Ontem a cidade parecia viva. A cidade estava bonita. As pessoas foram-me atraentes, ontem. Hoje, não dei pela cidade, atravessei-a mas não posso assegurar que ainda exista, talvez até seja despovoada. Oiço, ao longe, automóveis que poderiam ser reflexos da televisão ligada, se estivesse ligada. Parece que circulam, detenho-me num ápice (o mínimo possível de mim) e divago sobre onde irão. Depois, lembro-me que às vezes também eu vou. Às vezes, também eu penso que vou a algum lado.
.............R u m o. São curtas, e espero que inofensivas, confusões.





bird on the wire, Leonard Cohen

happy birthday...

[ kingdom of rain ]


Neblina. Abriu-se toda.

Aquela densidade, a sua consequência, proclamada oferenda. Procedimento: uma inalação, única, profunda. A troca de oxigénio, por água, abre tudo. Os rasgos disformes de corpo são decerto dolorosos, mas não se acha dor na sua fisionomia. A neblina, hoje é só a neblina, sem sombras (nem os vultos) e sem bastidor traz-lhe bonança.

[ it would be no more blood and no more pain ]


Na neblina. Na aragem húmida, abriu-se alagadiça. Dilatou as ventas.

(- A troca de oxigénio, por água abre-se tudo.)

Cingiu os tecidos que pingavam e envolveu-se de pujança restaurando o que o choro viera descobrir. Acertou as trocas gasosas e à celeridade cadenciada aprumou o feitio. Bravia seguiu.




kingdom of rain, The The

[ polpa ]

que a queda obedeça ao seu ritmo. a humidade faz parte. este é o privilégio do Outono que eu agarro. agrupo palavras: queda-débito-humidade-solar; silêncio-dias-chuva-monumento-silencio; azul-azul-azul; romã-boca-polpa; casa-pedra-sono; chuva-domingo-sabor; água-elemento-essencial; ramo-raíz-elemento; essencial-aguaceiro-polpa.

[ assim inaugurou aquele que será o seu último Outono ]


Quando deu por si, já estava no exterior do edifício onde o bom doutor pratica a medicina, voltou atrás para se certificar de que pagara a consulta e respectivos exames. De novo no exterior, cumpriu o gesto habitual – a contemplação da fachada Arte Nova do edifício. Tirou da mala o bloco de esboços -A5 e um lápis (macio e escuro, muito). Deixou que o dia anoitecesse. O dia do decreto do fim da minha capacidade fisiológica, pensou. Sorriu sarcasticamente, quase como quem se quer magoar a si próprio. Amanhã vou à papelaria comprar uma caixa enorme de lápis de cor, decidiu. O seu escárnio nunca durava mais do que cerca de 5 ou 10 minutos. Ainda se lembrou que se desse demasiada importância à vida a sua mente já se concentraria nos pormenores a não descurar. Más novas, recebera más novas. Sabia da naturalidade de não se sentir desesperada. Durante o caminho de volta à vila, dedicou-se à condução e às sombras amarelo-torrado das árvores. Foi um grande suspiro que libertou quando fechou, por dentro, a porta de casa. Olhou à sua volta e deu passos ao mesmo tempo que despia do seu corpo, robusto mas findo, pedaços do traje de ir à cidade grande. A única coisa que continuava a intrigá-la era a solidão, há muito que se resignara mas nunca conseguira compreender. A tentativa de entendimento da solidão fora o grande objectivo, e simultaneamente distúrbio, da sua existência. Isto aconteceu em absoluto silêncio.






photo

[ happy birthday mom, lov'ya ]


Bolo de chocolate. Mousse de chocolate. Frango panado com puré de batata e salada de endívias. Pudim flan. Pizza. Gnocchi. Gelatina de morango. Leite com chocolate. Sumo de maçã. Canja. Sopa de letras. Bolinhos de limão. Sandes de queijo da ilha. Chá com leite. Os lençóis amarelos, fofinhos. O biberão escondido até aos 6 anos e a enurese protegida dos olhares alheios. A boneca Maria Rita. Os cestos de pic-nic. As bolachas de chocolate com pepitas, embebidas em leite frio. As surpresas – bonecas novas escondidas entre os lençóis. O resto da sandes de atum que levava para a fábrica. Uma sandes para o almoço e conseguia guardar um restinho porque sabia que eu lhe ia vasculhar a mala ao fim do dia à procura daquele pedaço de alimento que teria o sabor do mundo todo em ternura. Diz, durante a minha vida toda, que está lá, aqui. (e tenho menos medo). É da razão essa segurança, chegaram dias e estou aqui, que não tenha medo. (e eu sei que assim tem menos medo). Esta mulher sem indícios de pobreza de espírito. Esta mulher que me deixou crescer. Quer uma caixa de chocolates. E esse pedido é honesto, não há dissimulação de outras aspirações quando nos revela o que deseja para este aniversário. Esta mulher é a minha mãe. Comovo-me ao dizer esta mulher é a minha mãe.

[ a casa que é ]

Era a casa e tudo o que a casa era. As paredes caiadas e a cal e os panos que a enfeitavam, na verdade, os panos que enfeitavam a casa que nos enfeitava os dias. E as noites acesas pelas luzes da casa, as paredes. A casa e os quadros às janelas. As janelas de cima com quadros verdes e azuis de céu, as janelas de baixo com os girassóis a fazer de vizinhos. A escada de barro e cera. E o corrimão da escada, a ferro, forte, verde pinheiro, manso. A casa era portuguesa de portugueses que andaram pelo mundo, por isso, a casa era portuguesa com sinais dos portugueses pelo mundo. A casa é uma expressão bonita. Esta expressão da casa é quente porque assim o era a casa, um calorífero. Nunca esqueceremos os dias a pintar e a tirar as danadas das ervas. Fizemos sempre questão de não retirar todas as danadas, para uma presença simbólica. Ateus politeístas, não cultivámos os objectos, mas amámos cada um. Podia contar-vos tantas histórias do passado desta casa, tantas! Agora, há momentos, olhei as paredes (depois de ter desligado a luz, estou prestes a subir) e imaginei, noutro pretérito, como será quando eu for passado nesta casa.

[ close my eyes & t r u s t ]

Quero percorrer mais paisagens e não quero ter de responder. Olhando em redor, parece-me haver pequenas autonomias. Falo da descontracção e é verdade que puxo por mais um cigarro e, mesmo que me volte a servir de mais whisky, não há desassossego nestes gestos. São tão humanos quanto a alforria que tenho para percorrer sem ter de responder. Estou aqui e não sei explicar a tão falada noite. (não sei). Por estes dias, prefiro ouvir o mar a negar entradas à suavidade do céu que paira. Alguma brutalidade, força, e sei: preciso de sentir a robustez externa. Deixo espaço necessário às sombras, conscientemente. Naquela característica que me parece ser, aprecio a actividade de ficar a velar o que permanece, que é o que serve de fonte. Assusto-me a estes dias, mas não me assustam cenários naturais tais como o dos ramos que lá fora se misturam com a chama restante deste outro dia que finda. Identifico estas rugas que exibo sem a laia do desgosto, estão quietas. São tão iguais quanto a meia dúzia de cabelos brancos que chegam. A árvore desses ramos é uma laranjeira: ai(!) a minha sede de cor e de forma. E tenho medo a instantes. Talvez seja a palavra errada para o cuidado: reforço o facto de que prefiro a natureza às quimeras.
É fatal a demanda da bestial compreensão, quero-a, mesmo que, a passos, a tarefa não seja cumprida com sucesso. Desconfio que é de onde surgem, a gerações espontâneas, os afectos sadios.

photos #1 #2

[ pela hora da sesta ] [ a manhã é um corpo incompleto * ]

Aproximas-te. Eu proponho: espalhamos folhas vegetais pelo pavimento, todo, disponho o meu corpo em posições enquanto o contornas a tangentes de tinta-da-china. Tu topas. Se, por exemplo, aos primeiros traços, percebermos que esquecêramos de pôr a tocar a banda sonora levanto-me diligente. Regresso ao pavimento com as intenções adulteradas. Corrompo as folhas vegetais, lês na minha imobilidade: a p r o x i m a – t e.

Danae, Gustav Klimt

* retirado do poema do Pedro

[ palavras de sete e quinhentos ]

























p e l e































singing softly to me, Kings of Convenience

[ Deus com todos* ] [ ao redol de mortos à causa da pior invenção da humanidade - a religião ]













[ such a pretty house and such a pretty garden ] [ silent silent ]




Partiu-se-me o coração (uma forma de estilo porque os corações não partem podem rasgar mas não partem)
Partiu-se-me o coração porque vi uma forma sem estilo não tinha botas ou antes tinha botas mas eram sem sola porque não tinha pés nem pernas não tinha braços nem mãos nem dedos por isso também não tinha nós dos dedos no lugar da barriga havia um buraco era um buraco sem mamas por isso não havia fígado nem estômago o intestino era uma palhinha entre um buraquinho que substituía a boca e outro buraco essa palhinha fazia cair os alimentos no chão os rins não eram rins eram um esboço embrionário por isso essa forma sem estilo fazia diálise e estava em lista de espera à espera mas essa forma sem estilo que tinha um chapéu onde não depositamos 10 cêntimos tinha coração e o coração não pode ser partido mas pode ser rasgado
a palhinha fazia cair os alimentos no chão na verdade fazia cair pão e água no chão porque nós sabemos que é só disso que essa forma de estilo precisa porque nós sabemos nós sabemos disso certamente parece
o coração não pode ser partido mas o coração pode ser rasgado.


no surprises, Radiohead




[ dawn dreaming ] e havia relâmpagos azuis e azuis. e pingos doutras cores


e acordei. e estava coberta com a manta azul, e isso quer dizer que estava muito aconchegada. e o barulho da chuva dava a impressão de que chovia à beira da minha cama. e então eu acordei esta madrugada e não abri os olhos para fingir que chovia ali dentro.

e era mesmo tangente à minha cama






still do anúncio Sony Bravia: Balls

[ action: to take a breath that's true ] [ reaction: and then it's smiles cover your heart ]




Repete inúmeras vezes as palavras

o desfecho é sempre outro.

Tu estás aí

eu sei, os vocábulos mudam de posição

a luz dá-lhes visibilidade.

Contemplo o teu silêncio enquanto permaneces.

Silencio este espaço

amplo

(um armazém à laia de casa

minimalista).


Minimalista...... ambiciono esta emoção

experimentar a honestidade.







photo


fade into you, Mazzy Star

[ as primeiras vezes ] [ everyone goes to the moon ]




Tenho medo, disse, apertando fortemente a mão da mãe ao mesmo tempo que o coração desta abafava. A mãe proferiu as palavras encantadas: não tenhas medo, eu estou aqui. Percorreram as dependências da escolinha, enquanto segurava a lancheira do “indie” the pooh numa mão, a menina ia desatando a força que exercia sobre a mão da mãe. Ao telefone, asseguraram-me “ficou a pintar, tinha o bibe sujo com tintas”. J

vamos ao...



[ quando fosse grande ]

- E depois?
- Depois? Serias essas coisas todas que te apetecesse ser.
- Era?
- Era. Diz lá uma coisa que gostarias de ser.
- Arquitecta. Conceberia edifícios para instituições… uma biblioteca! E casas, conceberia casas, participaria na concretização de sonhos. E fotógrafa – rostos por encomenda e zonas industriais por impulso – seriam os meus trabalhos. Encenadora de jovens actores em palcos com cheiro a veludo envelhecido. Realizaria curtas-metragens. Seria baixista de uma banda de rock’N’roll. Ou baterista. Atleta de curta distância. Padeira. Cozinheira. Palhaça. Enfermeira. Professora de Matemática. Professora de História. Professora de Língua Portuguesa. Professora de Filosofia. Contadora de histórias. Parteira. Gostaria de ser contadora de histórias, à medida que desenvolvesse cada história, veria as pessoas ir embora de barco como se elas próprias escrevessem cada conclusão. Gostaria de ser parteira de histórias.

[ mulheres e os baptismos ] [ whiskey & cigarettes ] [ mouths full of chocolate-covered cream ]

Preparamo-nos e dos nossos ventres falámos. Chamaste-lhe maternidade e agravei a minha expressão instantânea. O ricochete das palavras não poderá prolongar o seu efeito para além da licença que lhes seja concedida. Retrocedeste o olhar e eu sorri, nem madrasta!, disse-te. A minha gente, pensei. A noite passada foi adiante e não olhámos a meios, continuámos a sermo-nos o exercício de bem-estar. Meninas e moças, assim, mulheres entre nós e os nossos livros, que em nada nos apetece que sejam emancipados das nossas peneiras de trapos e bugigangas, cores-Kahlo em nosso redor. Dissemos as boas-noites com a palavra devida e fiquei a velar, solitária, o resto do serão. Ouvi a música apropriada à ocasião e regalei-me ao perceber que ensaiáramos dar nomes às coisas.


contribuições para este post:
imagem pelas mãos do
Manel, Broadway Bad e música pelas mãos do Carlos


everyone's gone to the moon, Nina Simone

- acknowledgements -

# coisas do arco da velha
# a décima nona canção
# um dos blogs mais bonitos - é preciso estar com atenção, o template muda frequentemente... e qual deles o mais bonito... ?
# Bada bada bada bada bada da...Bada bada bada bada bada da...
# pulsar

[ só tem de exterior a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço *] [ este cálice ]

Os produtos intermédios existem, portanto, esta realidade não é ócio. Não arrisco publicitar um produto final porque não é da morte que escrevo estas palavras. Esta composição nasce da minha vontade que é este desejo imenso de escrever os dias afora nos intervalos disso que não é ócio. Se o corpo permanecesse imóvel, a flacidez seria inanidade, mas o corpo arqueia, responde, recebe e responde-te. Dói-me este braço, e este também. Os cabelos ficam por escovar porque os movimentos são inibidos pela minha opção – prefiro a cabeça desgadelhada ao exercício desta dor que me nasce dos ossos, e, para o agravamento, esta dor ajusta-se a outra que lhe é independente - a dor tónica. Não quero exercitar tolerâncias e limiares, opto por descansar e isso não é uma confiança que ofereço às maleitas. A função que me falha é a que me proporciona uma presença polida mas não há feição a dar a um cabelo que não é esparguete nem caracol, deixo as normas do mundo de lado, imagino que estou a descansar a força que me falta nos galhos e escrevo. As mãos aliam-se para usar a menor genica possível e escrevo. Imagino que agora escrevo tanto quanto aspiro. Quero conversar sobre as indústrias que desejo fotografar e dos ossos e dos dias naquela casa de portas duplas abertas uma após a outra. Desejaria dizer um canto com as aberturas todas das portas daquela casa com girassóis a fazer de vizinhos à janela, em oposição à manifestação-nada-poética sempre-parca-em-literatura que eu possa fazer das salas-de-esperar não-ventiladas, as salas cuja indústria fotografo a cada passagem. Hoje doem-me os braços e há breves momentos durante os quais consigo esquecer.

* Ruy Belo (no post anterior a este)

[ viver e viver sem boca ] [ pintar a fuga do corpo ] [ os nomes - palavras ]

Tu estás aqui

Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra paz

Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui.

Ruy Belo

[ a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer *]

A cianose é o primeiro sinal de ressaca da indústria da escrita. Obceco. O juízo não tolda porém urge a alimentação à base de sopa de letras. A cada passada que dou, são espaços largos. Em contraponto, e para esquivar do trambolhão, redecoro o bêàbá. Pisca a luz vermelha dos cuidados: à medida que evolui o léxico, elaboram-se expressões manipuladas até à exaustão da inteligência. Confirma-se a hipótese intuitiva: os afectos não são instantâneos. Enquanto não são oxigenados os músculos vitais, por entre as pernas escorre o sangue da higiene mensal e penso é por isso que sobrevoam (algures e desfocadas) as aves cobertas de peles de ovelha. A fragilidade não toma proporções estúpidas – é só o susto – respirar passa a ser o acto mais elaborado do ser humano e isso é a natureza. A constituição do corpo do ser transporta destas coisas, é e, cabalmente, aprendeu a dizer “a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer”.

And the mercy seat is waiting
And I think my head is burning
And in a way I'm yearning
To be done with all this measuring of proof.
* Stig Dagerman




the mercy Seat, Nick Cave & the Bad Seeds

[ sensualidade afecto silêncio ]

Sede. É fome. Esquivo-me de ser acusada de profanação. Sim, o fim só existe quando a aflição são os olhos, trespassa-se a zona das olheiras com desvios esguios para evitar o olhar. O olhar é quase além do corpo, assim como disse David «(…) de cada vez que o rosto aproximas já é outra sede que nos queima (…)». O cortejo compõe-se e é involuntária a consciência de que estes corpos não são restos de corpo. Germina a procissão fisiológica. O presente é indicativo para que haja tempo. Grito uma pergunta afirmada, firme nos anos que se manifestam - o início da flacidez. O início da flacidez é belo, não se deixem a enganos por burlões da juventude. A mulher aprecia a firmeza das mãos desse homem nas suas carnes da idade. É ternura essa sede dumas mãos por um pedaço fisiologicamente a envelhecer. Estão lado-a-lado os sexos mastigados, a única prova da procissão é a sujidade casta que se vê nos pés do corpo. Silêncio. Sim, descansa em paz o corpo regado a fluídos segregados.



















foto de ff, tomografia das emoções! - música trazida à lembrança por Carlos Veríssimo (na minguante) e apelidada de BSO por Dolphin.s - tema à laia de resposta a escrito tão bonito do Henrique

tema livre como o é o afecto

. . .

versão com links:

Sede. É fome. Esquivo-me de ser acusada de profanação. Sim, o fim só existe quando a aflição são os olhos, trespassa-se a zona das olheiras com desvios esguios para evitar o olhar. O olhar é quase além do corpo, assim como disse David «(…) de cada vez que o rosto aproximas já é outra sede que nos queima (…)». O cortejo compõe-se e é involuntária a consciência de que estes corpos não são restos de corpo. Germina a procissão fisiológica. O presente é indicativo para que haja tempo. Grito uma pergunta afirmada, firme nos anos que se manifestam - o início da flacidez. O início da flacidez é belo, não se deixem a enganos por burlões da juventude. A mulher aprecia a firmeza das mãos desse homem nas suas carnes da idade. É ternura essa sede dumas mãos por um pedaço fisiologicamente a envelhecer. Estão lado-a-lado os sexos mastigados, a única prova da procissão é a sujidade casta que se vê nos pés do corpo. Silêncio. Sim, descansa em paz o corpo regado a fluídos segregados.




silence is sexy, Einsturzende Neubaten

[ lady luck ]

Repito o lusco-fusco sem pretensões destas. Estas pretensões, presumo, identificam-me a qualquer légua. Tudo fica com um aspecto mais elementar e eu tão longe dos outros elementos. Fico a chegar do regresso doutro lugar de onde voltei a partir. Com o cu virado para a lua, repete Maria Rosa, a velha. Mas eu sei, desejaria ter permanecido. Mas eu sei, regresso incessantemente. Todos os cenários foram favoráveis, até os maus. Perdi um planeta. Amanhã visto de preto. Para não perder as tradições. Sei disto: se decidir chegar amanhã, visto de preto. Quero saber da macieza monocromática, para assegurar estas quantas porções de caminhos a sós. Os anos e a idade - my parade. Agora sinto algum peso nos pés, não faz mal: desfiguram as dores lá de fora. Acknowledge them as I drive away slowly, feeling so holy, god knows, I’m feeling alive. Estou aqui, digo, repito, estou aqui. Em água, e continuo caminho, well there's trucks all a-passing me, and the lights are all flashing.



ol'55, Tom Waits

[ por estes dias ou um dia qualquer ] [ o meu rosto a querer sentir-se inexprimido ]

Estes são os nossos rostos. Num dia qualquer, uma dor de barriga leva o teu médico de família a xaropar-te por 6 meses seguidos. Quando, finalmente, te ouve dizer que estás com enjoo do doce que tomas às colheres de sopa, envia-te ao hospital da cidade grande com um papelito verde rabiscado. Entras, procuras o guichet, entregas a folha oficialmente verde a alguém e dás por ti dentro do circuito. A roda-viva começa enquanto brotam por todos os teus orifícios pensamentos de mortalha. Dos ouvidos saem as fantasmagorias da morfina, das narinas saem as imagens da tubagem necessária à saúde, segundo a definição da OMS, entenda-se, das órbitas saem os berros de encerrar as pálpebras à realidade que cada sala de espera arrebata. Estes são os nossos rostos, que pesam mais ou pesam menos consoante as calorias que terás ingerido ao pequeno-almoço. Um dia qualquer, percebes que andas a perder o apetite, alguns dias depois reparas que as calças estão largas, tomas o xarope 6 meses antes de ires parar àquele sítio com o papel verde-doença. Um dia qualquer, abalo. O meu argumento incluirá planos de fuga, planos extraordinários que me impedirão de ver estes nossos rostos macilentos. Os únicos rostos que verei serão rosados. Estipularei a eutanásia entre-amigos. O argumento não será auto-suficiente e sei que será sobejamente frágil na sua concepção - assim como nós, quando somos precipitados por arrepios de realidade nas salas de esperar não-ventiladas.



the body breaks, Devendra Banhart


I'm sandra aka margarete ~ acknowledgeyourself@gmail.com












































Uma árvore é uma obra de arte quando recriada em si mesma como conceito para ser metáfora.


Alberto Carneiro