la caisse du mouton
Antoine de Saint-Exupéry

Tanta doçura perdida pela terra toda. [...] Tinha renunciado havia muito a este género de remorso.

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- Vou buscar outra garrafa ao camarim do Pierre.

Saiu do gabinete. O que sentia não era tanto a vontade de whisky como a atracção que se desprendia dos corredores às escuras. Quando ela ali não estava, este cheiro a pó, esta penumbra, esta solidão desolada - nada daquilo existia, simplesmente não existia. E agora ela estava ali; o vermelho do tapete rompia do escuro como uma tímida luz de presença. Ela possuía este poder: a sua presença arrancava coisas à sua inconsciência, dava-lhes a cor que tinham, o cheiro que era o delas. Desceu um andar e empurrou diante de si a porta da sala; era como uma missão que lhe tivesse sido confiada, era preciso fazê-Ia existir, a esta sala deserta e cheia de noite. O pano de ferro estava descido, as paredes cheiravam a tinta fresca; as poltronas forradas de pelúcia vermelha dispunham-se, inertes, na expectativa. Há pouco, nada esperavam. E agora ela estava ali e as cadeiras estendiam os braços. Olhavam para o palco mascarado pelo pano, chamavam Pierre, as luzes da ribalta e uma multidão recolhida. Seria necessário ficar sempre ali, perpetuar aquela solidão e aquela expectativa; mas seria necessário estar sempre também noutro lado, no armazém de acessórios, nos camarins, no átrio: seria necessário estar em toda a parte. Atravessou um proscénio e subiu ao palco; abriu a porta e desceu à arrumação onde peças de cenários velhos iam ganhando mofo. Era ela a única pessoa a captar o sentido daqueles locais abandonados, daqueles objectos afundados no sono; estava ali e eles pertenciam-lhe. O mundo pertencia-lhe.

Passou a portazinha de ferro que fechava a entrada dos artistas, e avançou até meio do terrapleno. A toda a volta da praça, as casas dormiam, o teatro dormia; só a uma das janelas do teatro surgia uma luz cor-de-rosa. Sentou-se num banco, o céu brilhava, negro, por cima dos castanheiros. Parecia estar-se no centro de uma sub-prefeitura tranquila. Nesse instante, não lamentava que Pierre não estivesse junto dela, havia alegrias que não podia conhecer na presença dele: todas as alegrias da solidão; perdera-as havia oito anos e, por vezes, sentia como que um remorso. Encostou-se à madeira dura do banco; um passo rápido soava no asfalto do passeio; na avenida, um camião passou. Havia este ruído em movimento, o céu, a folhagem hesitante das árvores, uma vidraça cor de rosa numa fachada negra; já não havia Françoise; já ninguém existia em parte alguma.

Françoise pôs-se de pé de um salto; era estranho voltar a ser alguém, precisamente apenas uma mulher, uma mulher que se apressa porque há um trabalho urgente à espera dela, e este momento não passava de um momento da sua vida, como todos os outros. Pôs a mão no fecho da porta e virou-se com o coração apertado. Era um abandono, uma traição. A noite ia tragar de novo a praçazinha de província; o quadrado cor-de-rosa brilharia em vão, já não brilharia para ninguém. A doçura daquela hora ia perder-se para sempre. Tanta doçura perdida pela terra toda. Atravessou o pátio e subiu a escada verde de madeira. Tinha renunciado havia muito a este género de remorso. Nada era real a não ser a sua própria vida. Entrou no camarim de Pierre e tirou uma garrafa de whisky do armário; depois voltou a correr para o seu gabinete.

in "A Convidada", Simone de Beauvoir


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Uma árvore é uma obra de arte quando recriada em si mesma como conceito para ser metáfora.


Alberto Carneiro