la caisse du mouton
Antoine de Saint-Exupéry

a minha avó, a minha mãe e eu

É inevitável, não vale a pena pensar, não vale a pena não pensar. Todos os 23 de Dezembro acontece a mesma coisa. Acordo, abro os olhos e lágrimas correm. Lembro-me dela. Maria de Jesus Ferreira. A minha avó velhinha. Conheci-a quando tinha 4 anos, é uma história de amor à primeira vista.
Maria de Jesus Ferreira não foi à escola, casou, foi viver para uma aldeia longe da sua, teve seis filhos, 3 rapazes e 3 raparigas. Viveu traições, viveu a Poliomielite duradoura do seu filho A. (meu pai), viveu a esquizofrenia do seu filho J., viveu a morte da sua filha mais nova, aos 9 anos, viveu. Era uma mulher profundamente triste à qual era possível ouvir gargalhadas sonoras aquando momentos de humor. Com a minha avó, aprendi os silêncios. E o sorriso após o silêncio.
Brincávamos, organizava baptizados às minhas bonecas, fazia-lhes vestidos, aliás, fazia o enxoval todo, ainda tenho a colcha e os lençóis que me fez. Fazíamos romarias a fingir. Levava-me para o jardim de rosas que tinha no meio da vinha e ajudava-me a escolher rosas para fazermos ramos para a minha mãe. Apanhávamos figos. Gostava particularmente quando ela fazia pão com sardinhas na casa do forno, ou quando fazia cevada na bilha de barro, ao lume, e lhe punha uma brasa dentro. Eram dias seguros e felizes. Às vezes, eu pedia-lhe para me mostrar as coisas da tia. Uma espécie de memorial para a sua filha morta. Lá íamos, com o ar solene devido ao momento. Desfazia os laços brancos que fechavam cada um dos saquinhos e ia explicando, os livros da escola, as botas, o vestido da primeira comunhão, a ardósia. Sorria. E ficávamos em silêncio. As mãos dela voltavam a fazer laços, cuidadosamente. E ficávamos em silêncio.
A minha avó dava-nos a bênção.
A minha avó fazia-nos sentir, a cada um, filhos e netos, que somos especiais, mas nunca nos fez sentir que somos os mais especiais. Nunca tive ciúmes dos meus primos e estou certa que o mesmo aconteceu com eles. Não convivia na aldeia, nunca se lhe ouvia comentários acerca de vidas alheias. À medida que fui crescendo, fui, naturalmente, percebendo a vida dela enquanto, eu própria, mulher. O meu amor por aquele ser cresceu sempre. Quando a vida me contrariava, fugia para ela e agarrávamo-nos as mãos uma da outra, em forma de conchas.
Comecei a usar carrapito para poder parecer um pouco como ela. Nunca deixei de ter uma saia plissada no meu guarda-roupa. Quando ia lá a casa, pedia-lhe sempre para me mostrar o seu xaile. Um xaile enorme, azul-escuro, de pelúcia. Está aos pés da minha cama e, nas noites de desalento, é o que uso para combater o frio interior. Outra coisa que calhou em partilhas ao meu pai foi a sua cómoda do quarto, que agora habita o meu quarto. Nunca consegui raspar um pouco de cera que fosse da cómoda, porque, no dia em que decidi fazê-lo, ao retirar o papel duma das gavetas dei com escritos a lápis onde se lê, em caligrafia de criança, “ Maria do Céu”, o nome da sua filha morta, saberia a minha avó que aquilo estava ali escrito? Assim, arrumei as minhas ferramentas de restauradora de móveis.
Um dia, o telefone tocou e eu ouvi as palavras, a avó morreu. No simbólico dia da mãe de 1999.
Pus as minhas mãos sobre as dela, mas eram frias. A avó morreu. Já não posso estar com a avó velhinha sempre que quiser. Quisera que a minha avó vivesse para sempre.

Como todas as crianças que gostam de ouvir histórias sobre a sua existência, eu gostava quando me contava sobre o dia do seu 60º aniversário, em que lhe nasceu esta neta.
É hoje, o dia do nosso aniversário, fiz um carrapito, vesti a minha saia plissada. Comecei o dia triste, pensando, fatalmente, que o máximo que posso fazer, é contar um pouco sobre quem foi essa mulher e pôr flores brancas sobre um túmulo de mármore preto. Talvez seja. Voltei atrás, antes de sair de casa, soltei o cabelo e vesti as eternas calças de ganga. Falei com a minha mãe e agradeci-lhe a vida. Neste momento, sinto-me cheia por dentro, por ter tido o privilégio de ser neta de Maria de Jesus Ferreira.

I'm sandra aka margarete ~ acknowledgeyourself@gmail.com












































Uma árvore é uma obra de arte quando recriada em si mesma como conceito para ser metáfora.


Alberto Carneiro