És delico-doce nos teus actos. Os teus actos ficam menores em acção.
Não há fôlego que baste para qualquer acto-impacto.
É tempo de reclusão para uma das personagens.
O narrador não sabe do paradeiro de outros actores, isto se o texto se transforma de facto em actos que, por sua vez, formarão a peça a encenar. Com ou sem diálogo.
O narrador despertou e espreguiçou, pela seguinte ordem, os braços, as pernas, a coluna vertebral. Sentou-se na beira da cama e sorveu 3 goles de água, começou a fazer os exercícios vocais. Brrrr. Brrrrrr. Brr. M m m aaaaaa. Mmaaa. Nhãe. Nhãouuu.
Olhou o telefone, mas num instante decidiu que seria rude ligar ao escritor àquela hora de um Domingo. Seguiu para a cozinha e preparou o chá de perpétuas roxas. Olhou à sua volta e sentiu orgulho na sua cozinha, havia de tudo para se servir, e estava em perfeitas condições para a logística necessária ora para preparar um jantar para 8 pessoas, ora para fazer um bolo para visitas inesperadas. O narrador tinha especial desgosto pela existência de visitas inesperadas e enorme frustração por nunca ter tido forma de se insurgir a elas. Por vezes, o narrador ensaiava confrontações possíveis a este tipo de visitas, mas jamais as conseguiu aplicar, era, inclusive, convicto de ser vítima de mais inesperados do que a maior parte das pessoas. Deixou o chá a arrefecer e abriu as janelas.
Ligou o leitor de cd’s julgando ter no compartimento a selecção que lhe oferecera a irmã, assim que ouviu os primeiros acordes lembrou-se de tudo. Dois dias antes, recebera uma encomenda do argumentista com este cd e um bilhete “Ainda não encontrei forma de dizer ao escritor, mas está decidido que quero esta canção na peça – a cena em que Andreia se senta no chão com os berlindes na mão (quero que esteja vestida em 3 tons diferentes de verde, que haja um tapete carmim e uma telefonia), à medida que a canção passa (são 2’22 min.), Andreia joga os berlindes pela sala, no final, engole o abafador. Estou convicto de que o escritor tentará boicotar a canção, porque, como poderás constatar, de certa forma, vai contra a força e honestidade da sua escrita sobre este mundo. Não é podre, é delico-doce e, diria mesmo, perigosa pela falácia que transmite. Assim, deixo-te a questão: sentirás que a tua voz se sobreporá (narrando cada berlinde) a esta toada azulada, sem descaracterizar a obra do autor?”
O narrador sorriu. Colou os vários episódios que haviam acontecido desde Sexta-feira: a visita inesperada da irmã, a recepção da encomenda, a reorganização de alguns cantos da sua cozinha e o sonho desta noite. Parecia ter encontrado a solução para combinar a letargia de Andreia com o impacto de cada berlinde e o momento em que engole o abafador (algures entre a penúltima e a última estrofe da canção). Hoping like the blind era o mote perfeito para anteceder a morte de Andreia. Ligou a ambos, escritor e argumentista.
À mesa, deram os últimos retoques às cenas inacabadas, brindaram-se em congratulações. A satisfação era visível. Visitas desejadas, uma refeição preparada com esmero e o prazer de transformar o mundo em actos. Um Domingo contente.
Não há fôlego que baste para qualquer acto-impacto.
É tempo de reclusão para uma das personagens.
O narrador não sabe do paradeiro de outros actores, isto se o texto se transforma de facto em actos que, por sua vez, formarão a peça a encenar. Com ou sem diálogo.
O narrador despertou e espreguiçou, pela seguinte ordem, os braços, as pernas, a coluna vertebral. Sentou-se na beira da cama e sorveu 3 goles de água, começou a fazer os exercícios vocais. Brrrr. Brrrrrr. Brr. M m m aaaaaa. Mmaaa. Nhãe. Nhãouuu.
Olhou o telefone, mas num instante decidiu que seria rude ligar ao escritor àquela hora de um Domingo. Seguiu para a cozinha e preparou o chá de perpétuas roxas. Olhou à sua volta e sentiu orgulho na sua cozinha, havia de tudo para se servir, e estava em perfeitas condições para a logística necessária ora para preparar um jantar para 8 pessoas, ora para fazer um bolo para visitas inesperadas. O narrador tinha especial desgosto pela existência de visitas inesperadas e enorme frustração por nunca ter tido forma de se insurgir a elas. Por vezes, o narrador ensaiava confrontações possíveis a este tipo de visitas, mas jamais as conseguiu aplicar, era, inclusive, convicto de ser vítima de mais inesperados do que a maior parte das pessoas. Deixou o chá a arrefecer e abriu as janelas.
Ligou o leitor de cd’s julgando ter no compartimento a selecção que lhe oferecera a irmã, assim que ouviu os primeiros acordes lembrou-se de tudo. Dois dias antes, recebera uma encomenda do argumentista com este cd e um bilhete “Ainda não encontrei forma de dizer ao escritor, mas está decidido que quero esta canção na peça – a cena em que Andreia se senta no chão com os berlindes na mão (quero que esteja vestida em 3 tons diferentes de verde, que haja um tapete carmim e uma telefonia), à medida que a canção passa (são 2’22 min.), Andreia joga os berlindes pela sala, no final, engole o abafador. Estou convicto de que o escritor tentará boicotar a canção, porque, como poderás constatar, de certa forma, vai contra a força e honestidade da sua escrita sobre este mundo. Não é podre, é delico-doce e, diria mesmo, perigosa pela falácia que transmite. Assim, deixo-te a questão: sentirás que a tua voz se sobreporá (narrando cada berlinde) a esta toada azulada, sem descaracterizar a obra do autor?”
O narrador sorriu. Colou os vários episódios que haviam acontecido desde Sexta-feira: a visita inesperada da irmã, a recepção da encomenda, a reorganização de alguns cantos da sua cozinha e o sonho desta noite. Parecia ter encontrado a solução para combinar a letargia de Andreia com o impacto de cada berlinde e o momento em que engole o abafador (algures entre a penúltima e a última estrofe da canção). Hoping like the blind era o mote perfeito para anteceder a morte de Andreia. Ligou a ambos, escritor e argumentista.
À mesa, deram os últimos retoques às cenas inacabadas, brindaram-se em congratulações. A satisfação era visível. Visitas desejadas, uma refeição preparada com esmero e o prazer de transformar o mundo em actos. Um Domingo contente.
música: Way to blue, Nick Drake