O Natal, a grande festa doméstica de Inglaterra, foi este ano triste – dessa tristeza particular que oferece, por um dia de calma ardente, a praça deserta da vila pobre, ou dessa melancolia que infundem umas poucas de cadeiras vazias em torno de um fogão apagado, numa sala a que se não voltará mais…
O que nos estragou o Natal, não foram decerto as preocupações políticas, apesar da sua negrura de borrasca.
(…) o que nos estragou o Natal, foi simplesmente a falta de neve. (…)
Aqui estamos sobre este globo há doze mil anos a girar fastidiosamente em torno do sol, e sem adiantar um metro na famosa estrada do progresso e da perfectibilidade: porque só algum ingénuo de província é que ainda considera progresso a invenção desses bonecos pueris que se chamam máquinas, engenhos, locomotivas, etc., e essas prosas laboriais e difusas que se denominam sistemas sociais.
No dois ou três primeiros mil anos de existência trepámos a uma certa altura de civilização; mas depois temos vindo rolando para baixo numa cambalhota secular.
O tipo secular e doméstico de uma aldeia Ária do Himalaia, tal como uma vetusta tradição o tem trazido até nós, é infinitamente mais perfeito que o nosso organismo doméstico e social. Já não falo de gregos e romanos: ninguém hoje tem bastante génio para compor um coro de Esquilo ou uma página de Virgílio; como escultura e arquitectura, somos grotescos; nenhum milionário é capaz de jantar como Lúculo; agitavam-se em Atenas ou Roma mais ideias superiores num só dia do eu nós inventámos num século; os nossos exércitos fazem rir, comparados às legiões de Germânicos; não há nada equiparável À administração romana; o boulevard é uma viela suja ao lado da Via Ápia; nem uma Aspásia temos; nunca ninguém tornou a falar como Demóstenes; e o servo, o escravo, essa miséria de antiguidade, não era mais desgraçado que o proletário moderno.
De facto, pode-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu venerável pai – o macaco; excepto em duas coisas temerosas – o sofrimentos moral e o sofrimento social.
Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inútil: afogá-la num dilúvio. Mas afogá-la toda, sem repetir a fatal indulgência que o levou a poupar Noé; se não fosse o egoísmo senil desse patriarca borracho, que queria continuar a viver, para continuar a beber, nós hoje gozaríamos a felicidade inefável de não sermos…
O Natal, retirado de "Cartas de Inglaterra"
Eça de Queiroz
imagem do filme ainda há pastores
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