Não sei quem, nem em que lugar,
mas alguém me deve ter morrido.
Senti essa morte num arrepio da tarde.
Qualquer amigo, um dos vários
que não conheço e só a poesia
sustenta. Talvez a morte fosse
outra: um pequeno réptil
no sol súbito e quente de Março
esmagado por pancada certeira;
um cão atropelado por um bruto
que, ao volante, se julga um deus
de arrabalde, com sucesso garantido
junto de três ou quatro putas de turno.
Talvez a de uma estrela, porque também
elas morrem, também elas morrem.
Ao longe pressentida
mas discreta.
A quem procura
entregas-te aberta.
Tinha os olhos abertos mas não via.
O corpo todo era a saudade
de alguém que o modelara e não sabia
que o tocara de Maio e claridade.
Parava o seu gesto onde pára tudo:
no limiar das coisas por saber
- e ficara surdo e cego e mudo
para que tudo fosse grave no seu ser.
*
Algumas Reflexões sobre a Mulher
Elas são as mães:
rompem do inferno, furam a treva,
arrastando
os seus mantos na poeira das estrelas.
Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do pão.
Na vulva sombria
é onde fazem o lume:
ali têm casa.
Em segredo, escondem
o latir lancinante dos seus cães.
Nos olhos, o relâmpago
negro do frio.
Longamente bebem
o silêncio
nas próprias mãos.
O olhar
desafia as aves:
o seu voo é mais fundo.
Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.
despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.
É quando dançam que todos os caminhos
levam ao mar.
São elas que fabricam o mel,
o aroma do luar,
o branco da rosa.
Quando o galo canta,
desprendem-se
para serem orvalho.
O sorriso
é para a criança
que pressentem nas fontes.
Só elas conhecem
a morte
pelo cheiro da sombra.
*
Deve haver um lugar onde um braço
e outro braço sejam mais que dois braços,
um ardor de folhas mordidas pela chuva,
a manhã perto nem que seja de rastos.
*
Balança
No prato da balança um verso basta
para pesar no outro a minha vida.
*
Arte de Navegar
Vê como o Verão
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e minha mão marinheiro.
*
Os Trabalhos da Mão
Começo a dar-me conta: a mão
que escreve os versos
envelheceu. deixou de amar a areias
da dunas, as tardes de chuva
miúda, o orvalho matinal
dos cardos. Prefere agora as sílabas
da sua aflição.
Sempre trabalhou mais que sua irmã,
um pouco mimada, um pouco
preguiçosa, mais bonita.
A si coube sempre
a tarefa mais dura: semear, colher,
coser, esfregar. Mas também
acariciar, é certo. A exigência,
o rigor, acabaram por fatigá-la.
O fim não pode tardar: oxalá
tenha em conta a sua nobreza.
*
Memória dos Dias
Vais e vens na memória dos dias
onde o amor
cerciu a casa de luz matutina.
Às vezes sabíamos de ti pelo aroma
das glicínias escorrendo no muro,
outras pelo rumor do verão rente
ao oiro velho dos plátanos.
Vais e vens. E quando regressas
é o teu cão o primeiro a sabê-lo.
Ao ouvi-lo latir, sabíamos que contigo
também o amor chegara a casa.
*
Improviso na Madrugada
Húmido de beijos e de lágrimas,
ardor da terra com sabor a mar,
o teu corpo perdia-se no meu.
(vontade de ser barco ou de cantar.)
Eugénio de Andrade, 1923-2005