la caisse du mouton
Antoine de Saint-Exupéry

Obrigada, Eugénio, obrigada!

Arrepio na tarde

Não sei quem, nem em que lugar,
mas alguém me deve ter morrido.
Senti essa morte num arrepio da tarde.
Qualquer amigo, um dos vários
que não conheço e só a poesia
sustenta. Talvez a morte fosse
outra: um pequeno réptil
no sol súbito e quente de Março
esmagado por pancada certeira;
um cão atropelado por um bruto
que, ao volante, se julga um deus
de arrabalde, com sucesso garantido
junto de três ou quatro putas de turno.
Talvez a de uma estrela, porque também
elas morrem, também elas morrem.
*
Boca da terra.
Ao longe pressentida
mas discreta.
A quem procura
entregas-te aberta.
*
O Anjo de Pedra

Tinha os olhos abertos mas não via.
O corpo todo era a saudade
de alguém que o modelara e não sabia
que o tocara de M
aio e claridade.

Parava o seu gesto onde pára tudo:
no limiar das coisas por saber
- e ficara surdo e cego e mudo
para que tudo fosse grave no seu ser.

*


Algumas Reflexões sobre a Mulher

Elas são as mães:
rompem do inferno, furam a treva,
arrastando
os seus mantos na poeira das estrelas.

Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do pão.

Na vulva sombria
é onde fazem o lume:
ali têm casa.

Em segredo, escondem
o latir lancinante dos seus cães.

Nos olhos, o relâmpago
negro do frio.


Longamente bebem
o silêncio
nas próprias mãos.

O olhar
desafia as aves:
o seu voo é mais fundo.

Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.

despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.

É quando dançam que todos os caminhos
levam ao mar.

São elas que fabricam o mel,
o aroma do luar,
o branco da rosa.
Quando o galo canta,
desprendem-se
para serem orvalho.

O sorriso
é para a criança
que pressentem nas fontes.

Só elas conhecem
a morte
pelo cheiro da sombra.

*

Deve haver um lugar onde um braço
e outro braço sejam mais que dois braços,
um ardor de folhas mordidas pela chuva,
a manhã perto nem que seja de rastos.

*

Balança

No prato da balança um verso basta
para pesar no outro a minha vida.

*


Arte de Navegar

Vê como o Verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro.

*

Os Trabalhos da Mão

Começo a dar-me conta: a mão
que escreve os versos
envelheceu. deixou de amar a areias
da dunas, as tardes de chuva
miúda, o orvalho matinal
dos cardos. Prefere agora as sílabas
da sua aflição.
Sempre trabalhou mais que sua irmã,
um pouco mimada, um pouco
preguiçosa, mais bonita.
A si coube sempre
a tarefa mais dura: semear, colher,
coser, esfregar. Mas também
acariciar, é certo. A exigência,
o rigor, acabaram por fatigá-la.
O fim não pode tardar: oxalá
tenha em conta a sua nobreza.

*

Memória dos Dias

Vais e vens na memória dos dias
onde o amor
cerciu a casa de luz matutina.
Às vezes sabíamos de ti pelo aroma
das glicínias escorrendo no muro,
outras pelo rumor do verão rente
ao oiro velho dos plátanos.
Vais e vens. E quando regressas
é o teu cão o primeiro a sabê-lo.
Ao ouvi-lo latir, sabíamos que contigo
também o amor chegara a casa.

*


Improviso na Madrugada

Húmido de beijos e de lágrimas,
ardor da terra com sabor a mar,
o teu corpo perdia-se no meu.

(vontade de ser barco ou de cantar.)



Eugénio de Andrade, 1923-2005


I'm sandra aka margarete ~ acknowledgeyourself@gmail.com












































Uma árvore é uma obra de arte quando recriada em si mesma como conceito para ser metáfora.


Alberto Carneiro